A presença da memória indígena na cidade e os caminhos para que esse legado seja mais enaltecido
Por Lívia Doutel de Andrade Bártholo
Ao desembarcar em Niterói, logo é possível perceber o ritmo frenético da cidade. A Estação das Barcas, localizada na região central, possui um fluxo contínuo de pessoas que, diariamente, realizam o trajeto entre a capital do estado e a Cidade Sorriso. De frente para a Baía de Guanabara, a maior testemunha de toda essa movimentação é a estátua de Arariboia, personagem relevante no processo de formação da cidade.
Estátua de Arariboia, localizada no centro de Niterói – Foto: Barbara Lopes
A história de Niterói está intrinsecamente ligada aos povos originários. Sua origem remonta ao século XVI, período no qual havia uma disputa entre portugueses e franceses sobre a posse de alguns territórios do Rio de Janeiro. A partir de alianças entre os colonizadores e povos locais – Portugal se aproximando com o povo Temiminó, cujo líder era Arariboia, e a França com os Tamoio – diversas batalhas foram travadas.
Ao final do conflito, os portugueses e temiminós saíram vitoriosos. Assim, conforme explicado por Maurício Bertola, pesquisador associado ao POLIS/UFF, “Arariboia recebe uma sesmaria e cria a aldeia de São Lourenço dos Índios que, em 1819, vai se transformar na Vila Real da Praia Grande.” No ano de 1835 a Vila é elevada à condição de cidade, momento no qual é rebatizada de Niterói.
Igreja de São Lourenço dos Índios. A construção se relaciona ao assentamento doado à Arariboia. A presença da igreja demonstra que, desde o início da ocupação da área, já havia influência religiosa na região – Foto: Secretaria de Cultura
A memória indígena e seu processo de desvalorização
Quando questionado a respeito do passado local, a resposta mais frequente entre os moradores é a menção à figura de Arariboia como o principal vínculo de Niterói e seus primeiros habitantes. De acordo com a niteroiense Clara Marchezini, 20 anos, a abordagem do tema é focada principalmente na questão histórica. “Além da história de como a cidade surgiu, [a temática indígena] não foi muito aprofundada”.
A falta de discussões acerca da participação indígena na construção de Niterói exemplifica o silenciamento cultural sofrido pelos povos originários. Esse fenômeno surge a partir da colonização:
“Povos colonizados tendem a ter a sua cultura esvaziada pela sobreposição da cultura do colonizador. […] O racismo já estruturado contra essa população dificulta e inviabiliza a valorização da cultura indígena, que por séculos foi representada por termos e referenciais pejorativos.”
Lia Bastos, graduada em Produção Cultural pela UFF
Autora do livro “Niterói, Terra de Índio: apagamentos, silenciamentos e reapropriações em torno da figura de Arariboia” (2018), escrito a partir de sua tese de mestrado, Lia realizou uma extensa pesquisa sobre essa temática. “Para mim ficou evidente que houve um apagamento da cultura indígena na cidade. Por várias vezes ficou explícito na fala das pessoas entrevistadas e até mesmo no texto de alguns autores da cidade, o incômodo sobre a fundação de Niterói estar vinculada a uma pessoa indígena.”
Capa do livro “Niterói, terra de Índio” – Reprodução: Eduff
Marize Guarani, doutoranda em Educação pela UFF, Conselheira do CEDINDI (Conselho Estadual dos Direitos Indígenas do Rio de Janeiro) e membro do PARLAÍNDIO, afirma que a cidade não mantém nenhuma relação com os povos originários. “Essa relação não existe em lugar nenhum, porque o povo da cidade nos olha como se nós fôssemos povos diaspóricos, ou seja, essa terra não é nossa, nós chegamos aqui depois de todo mundo.”
Em sua fala, Marize destaca inclusive que o significado de “Niterói”, que possui origem no tronco tupi, foi modificado ao longo do tempo. “O pessoal diz que Niterói quer dizer ‘águas escondidas’. Eu conversei com Aniceto Xavante, a maior liderança do povo Xavante, que contou que a história de seu povo se iniciou na região de Niterói, na Baía de Guanabara. O local foi batizado de Iteró, que quer dizer em língua Xavante ‘nossa terra’. E ninguém sabe disso”.
Além da questão linguística, episódios recentes ilustram essa desvalorização. Em 2013 a comunidade guarani Tekoá Mboy-ty, localizada em Camboinhas, precisou ser remanejada para Maricá. A especulação imobiliária, somada a incêndios criminosos ocorridos em 2008, levaram à mudança de município, fato que denuncia a urgência de debates sobre a questão indígena em Niterói.
A educação como um caminho para a valorização cultural
Refletir sobre a maneira com que a história foi construída é de extrema relevância para o estabelecimento de uma sociedade mais igualitária e livre de estereótipos. Segundo Lia, “ A estereotipagem do indivíduo e de suas práticas culturais faz com que este seja desumanizado, visto como o outro e não como um igual, isto é, como um sujeito partícipe daquela sociedade.“
Para desconstruir esse tipo de visão, é imprescindível o ensino da história dos povos originários. Segundo Marize : “Ou as universidades mudam o currículo e colocam as questões negras, as questões indígenas e os professores começam a tomar consciência da necessidade de mudar as epistemologias que estão dentro do ensino fundamental, ou a gente não vai mudar nunca nada.”
Confira aqui um trecho da fala de Marize Guarani:
Desde 1996 há no país a Lei nº 9.394, que prevê a obrigatoriedade de ensino da cultura e história indígena e afro-brasileira. Mas, para que a legislação seja realmente cumprida, é necessário que a sociedade como um todo esteja disposta a revisitar seu passado.“Esse tema, essa história deveria ser tratada com maior atenção e respeito, pois faz parte da identidade da cidade e de seus cidadãos”, pontua Lia. A reflexão acerca do papel dos povos originários deve ser permanente, e fazer parte do cotidiano de seus moradores – deixando de ser realizada apenas em datas comemorativas.